sábado, 20 de novembro de 2010

OUTROS AUTORES

RETRATO DE MÓNICA

Sophia de Mello Breyner Andresen

Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.
Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distracção pode causar a morte do artista». Mónica nunca tem uma distracção. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.
Os jantares de Mónica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é óptima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida pessoas que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exactamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.
Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também íntima de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mónica é um pobre diabo que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as situações mundanas. O mundo dos negócios é bem-pensante.
É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.
E por isso Mónica está nas melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes, admiradora de seus silêncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que está ao serviço dela, admiradora do seu espírito, que ela serve.
Pode-se dizer que em cada edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mónica.
Há vários meses que não vejo Mónica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há evidentemente, nenhum mal. Toda a gente sabe que Mónica é seriíssima toda a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto.
Não é o desejo do amor que os une. O que os une e justamente uma vontade sem amor.
E é natural que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio; mais firme fundamento do seu poder.


IN Sophia de Mello Breyner Andresen
Contos Exemplares
1996 .

Colocado por Rogério Coelho

3 comentários:

Associação Antigos Alunos Escola Tomás Cabreira disse...

Espero que também gostem deste.
Venham os comentários.
Rogério

Anónimo disse...

MEU VELHO,

Viva,

Estás como o vinho do Porto.

Parabens, porque eu não conhecia esta Sophia. A Sophia que me é familiar é aquela mulher sábia que faz versos e declama-os na rua ou noutro lugar qualquer.

Indiferente a tudo e a todos, quer seja em Lisboa, Porto, Milão ou New York.

Li o texto de rajada e a Mónica ficou-me.

Conheci um tipo desta força, chamado Mário, que ia aos restaurantes e apresentava-se como sendo engenheiro. Porquê Mário?

Porque sou melhor servido, disse ele.

Mónica conseguia gerir o tempo disponível para fazer tanta coisa. Aqui está a virtude.

Podia ser esta a mulher que disse a Churchhil que lhe punha o veneno no chá.

Literariamente o texto está bem construído e não é fácil. Mas eu fui atras dele e da Mónica.

15 valores para a Sofhia e 5 valores para o Rogério, pela pesquisa e pela sellecção.

Ab..JBS

J.Elias Moreno disse...

Pois é.
Confesso que não conhecia o Conto.
Acho que o Retrato de Mónica, tem algo do retrato de Sofia.
Foi Sofia que escreveu: Vemos ouvimos e lemos, não podemos ignorar.
Se tivesse lido toda a sua Obra, não estaria agora aqui a confessar a minha ignorância.
Vês amigo Rogério, como foi boa a tua idéia, e como com a sua concretização enriqueces a minha cultura?!
Bem hajas por isso.
Gostaria igualmente de ver aqui publicado,também de Sofia; "O Caminho da Manhã".
Este eu já li, e trilhei esse caminho (agora imaginário), até ao Mercado Municipal de Lagos, para me emocionar com a releitura de parte desse "Poema", inscrito na escadaria de acesso ao mercado do peixe.
Devia ser eleito Património Cultural Mundial.

Abraço
JEM